Como o corpo produz tudo o que é necessário para que o parto seja um evento seguro, e a conseqüência das interferências nesse processo
É bem sabido que a vida na terra é composta de uma rede que interconecta
todos os seres, onde um depende do outro para que o todo subsista. A própria
natureza cria sistemas de auto-regulação que favorecem a vida. É como se fosse
do próprio “interesse” do todo manter a reprodução dos seres vivos.
Assim, é inato a cada fêmea do reino animal - como a cada mulher - um
sistema reprodutivo perfeitamente organizado para a manutenção da espécie e
para que gerar, gestar, e parir sejam experiências seguras para a mulher. Num
parto sem perturbações, o próprio organismo humano se ocupa de produzir
analgésicos (beta-endorfinas) que aliviam as dores do parto, ou de atingir um
pico de ocitocina que previne hemorragia pós-parto, por exemplo.
Mesmo sem receber informações sobre o que deve ser feito, sem ser
“educado” para o parto, o corpo feminino será capaz de realizá-lo, da mesma
maneira como realiza qualquer outra função fisiológica sem que haja necessidade
de um comando racional para acionar esse mecanismo.
O parto é um evento fisiológico
Em seus seminários, o obstetra francês Michel Odent lança sempre a
pergunta: “qual é a parte mais ativa em uma mulher em trabalho de parto?” - o
cérebro. É ele que comanda todas as contrações uterinas, a intensidade com que
acontecem, o ritmo do trabalho; é o cérebro que acionará e liberará no
organismo da mulher hormônios que vão além do nascimento em si, agindo na
transformação da mulher (e todas as outras fêmeas) em uma mãe. Alguns hormônios
atuam não apenas no nível físico, mas também no nível comportamental e
emocional, como a prolactina, que ativa o instinto materno, ou as
beta-endorfinas que criarão o laço de dependência e cuidado entre mãe e filho¹.
Há milhares de anos esse mecanismo fisiológico tem permitido que a
espécie humana se perpetue. As intervenções médicas nesse processo, contudo,
têm acarretado partos difíceis, traumáticos, e com seqüelas comportamentais e
emocionais, que se mostram seja nas mulheres com depressão pós-parto ou
sentindo-se incapazes de cuidarem de seus filhos, seja na instituição de uma
sociedade mais violenta, devido aos seus “novos integrantes” não terem recebido
doses de hormônios previstos pelo cérebro.²
Hormônios sintéticos (utilizados para induzir e/ou acelerar o trabalho),
analgésicos, epidurais, ou mesmo condições externas como luz forte, por
exemplo, podem interferir nessa rede hormonal e interromper o encadeamento
fisiológico e a seqüência do trabalho. Hormônios sintéticos causam efeitos
físicos em determinada parte do corpo, mas não atuam no comportamento como os
hormônios produzidos pelo próprio cérebro, além de possuírem uma ação isolada,
não sendo regulados de acordo com o que está acontecendo no resto do corpo da
mãe e do bebê.
Hormônios naturais x Hormônios
Sintéticos
Quando é ministrada ocitocina sintética a uma mulher durante o trabalho
de parto, o número de receptores de ocitocina no útero é reduzido pelo corpo
para prevenir uma estimulação em excesso.³ Isso significa que a mulher tem maiores riscos de hemorragia pós-parto,
pois sua própria liberação de ocitocina, crítica nesse momento para contrair o
útero e prevenir a hemorragia, será inútil devido ao baixo número de
receptores.
A ocitocina materna atravessa a placenta e entra no cérebro do bebê
durante o trabalho, agindo para proteger as células cerebrais fetais
“desligando-as”, e diminuindo o consumo de oxigênio em um momento em que os
níveis de oxigênio disponíveis para o feto são naturalmente baixos4. A ocitocina sintética, porém, não tem a capacidade de atravessar a
parede placentária, e não atingirá o organismo do bebê.
Outro efeito da ocitocina sintética é que as contrações produzidas por
ela podem acontecer muito próximas umas das outras, impedindo que o bebê se
recupere da pressão sofrida pelo útero. Em condições normais, o cérebro da mãe
libera a ocitocina por meio de pulsações, e como os dois organismos – mãe e
bebê - estão em comunicação durante o trabalho de parto por meio do fluxo
sanguíneo comum, o cérebro conseguirá “ler” o nível de catecolaminas liberada
na corrente sanguinea pelo bebê, regulando a intensidade e o ritmo das
contrações de acordo com o nível de estresse vivido pelo bebê e pela mãe.
Os níveis de todos os hormônios presentes no momento do parto são
regulados de acordo com o andamento do trabalho e do estado físico em que se
encontra a mãe e o bebê. A alteração de um só elemento desestrutura toda essa
delicada rede, cujas conseqüências se estendem para o pós-parto, o aleitamento
e a relação emocional entre mãe e filho. Nos momentos finais da preparação do
bebê para o nascimento, os hormônios atuam para amadurecer os pulmões e regular
o sistema termogênico (regulação térmica) do recém-nascido.
Os danos causados por interferências no
sistema hormonal do parto
Durante o período pré-natal, o cérebro do bebê está mais vulnerável a
danos irreversíveis5 e estudos indicam que substâncias ministradas por volta da hora do
parto, mesmo em pequenas doses, podem causar efeitos colaterais na estrutura do
cérebro e na química do recém-nascido que talvez não sejam claros até a idade
adulta.6
Os medicamentos ministrados à mãe entram imediatamente na corrente
sangüínea e vão igualmente ao bebê, e alguns desses medicamentos serão
absorvidos preferencialmente pelo seu cérebro7. A meia-vida das substâncias ministradas (ou seja, o tempo que se leva
para reduzir em 50% o nível do medicamento da corrente sangüínea) é muito maior
no organismo do bebê após o corte do cordão umbilical. A buvicaína, por exemplo
(medicamento derivado da cocaína, usado como anestésico local), tem uma
meia-vida de 2,7 horas no organismo adulto, mas cerca 8 horas em um bebê
recém-nascido.8
Os medicamentos utilizados em procedimentos de rotina nos partos
continuam agindo no corpo da mãe e do bebê por horas após o parto, fazendo com
que a mãe esteja sedada no momento de seu primeiro encontro com seu filho, e
que o bebê nasça sob efeito dessas drogas, o que causa um imprinting químico no
seu cérebro. As conseqüências desse fenômeno poderão ser percebidas na vida
adulta como tendência física em reviver tal sensação experienciada no parto,
causada por essas substâncias anestésicas. O imprinting previsto pela natureza
para o cérebro do bebê neste momento seria aquele realizado pela ocitocina
produzida pelo cérebro da mãe e do bebê durante um trabalho de parto sem
interferências.
Para que o trabalho e o parto aconteçam de forma ideal, algumas medidas
simples podem ser tomadas, que permitem que o sistema límbico (parte primitiva
do cérebro, comum a todos os mamíferos) faça o trabalho de produção dos
hormônios necessários ao parto e ao imprinting no cérebro da mãe e do bebê. O
neo-cortex humano - a parte mais racional e moderna do cérebro, que quando em
ação impede o perfeito funcionamento dos comandos do sistema límbico, que
comanda as funções fisiológicas previstas para o parto9 - é estimulado por luzes fortes, pela
construção de um raciocínio por meio da linguagem, pelo frio (libera
adrenalina), e pela sensação de estar em risco. Evitar todos esses fatores é a
condição básica para que o parto seja facilitado, e que o corpo coloque em ação
o modelo fisiológico previsto para um parto seguro e prazeroso.
por Letícia Koehler
1. Pesquisa realizada na
França sobre o efeito das epidurais em animais mostrou que as ovelhas em que
foram injetadas epidural não tiveram um comportamento materno normal após o
nascimento dos filhotes; o efeito foi mais fortemente marcado pelas ovelhas que
receberam a droga no início do trabalho: sete entre oito dessas mães não
mostraram interesse por seus filhotes por ao menos 30 minutos.1A Os
pesquisadores analisaram baixos níveis de ocitocina no cérebro dessas ovelhas e
também demonstraram uma reversão parcial dos efeitos do comportamento maternal
quando a ocitocina foi ministrada no cérebro dessas recém-mães.1B A)Krehbiel D,
Poindron P, Levy F, Prud'Homme MJ. Peridural
anesthesia disturbs maternal behavior in primiparous and multiparous parturient
ewes. Physiol Behav. 1987;40(4):463-472. B) Levy F, Kendrick KM, Keverne EB,
Piketty V, Poindron P. Intracerebral oxytocin is important for the onset of
maternal behavior in inexperienced ewes delivered under peridural anesthesia. Behav Neurosci. Apr
1992;106(2):427-432.
2. O obstetra francês
Michel Odent realizou diversos estudos sobre o tema. A vasta bibliografia do
autor disponibiliza mais informações, principalmente a obra The Scientification
of Love. Revised ed. London: Free Association Books; 2001.
3. Phaneuf S,
Rodriguez Linares B, TambyRaja RL, MacKenzie IZ, Lopez Bernal A. Loss of
myometrial oxytocin receptors during oxytocin-induced and oxytocin-augmented
labour. J Reprod Fertil. Sep 2000;120(1):91-97.
4. Tyzio R,
Cossart R, Khalilov I, et al. Maternal oxytocin triggers a transient inhibitory
switch in GABA signaling in the fetal brain during delivery. Science. Dec 15
2006;314(5806):1788-1792.
5. Mirmiran M,
Swaab D. Effects of perinatal medication on the developing brain. In: Nijhuis
J, ed. Fetal behaviour. Oxford: Oxford University Press; 1992.
6. Nyberg K, Buka
SL, Lipsitt LP. Perinatal medication as a potential risk factor for adult drug
abuse in a North American cohort. Epidemiology. Nov 2000;11(6):715-716 e Csaba
G, Tekes K. Is the brain hormonally imprintable? Brain Dev. Oct
2005;27(7):465-471.
7. Hale T. The
effects on breastfeeding women of anaesthetic medications used during labour.
Paper presented at: The Passage to Motherhood, 1998; Brisbane Australia.
8. Hale T. Medications and Mother's Milk. Amarillo TX:
Pharmasoft; 1997.
9. Veja também o texto
As necessidades básicas da parturientehttp://guiadobebe.uol.com.br/parto/as_necessidades_basicas_da_parturiente.htm
Letícia Koehler é jornalista free-lancer, atuando na área humana, ambiental e de
culturas nativas. Desde 2000 está envolvida com o tema do parto natural e
humanizado. leticialk@hotmail.com
Este texto foi baseado no artigo Ecstatic Birth - Nature’s Hormonal
Blueprint for Labor de Sarah Buckley. As referências bibliográficas (com
exceção da n. 2 e 9) também foram retiradas dos texto original de Dra Buckley.
Para ter acesso ao artigo de Sarah, visite o site www.sarahbuckley.com (original em inglês), ouwww.partodoprincipio.com.br (versão em
português).
Nossa. Amei. Vou ler e reler. Obrigada, Leticia.
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